Recintos possuídos OU O gozo de Um demónio - Parte I ~

por Mosath, Membro da APS 

 "Encarar, sob relatos de mim, eu próprio"
                                                                                                                                                                
   

Vento e chuva amena. O Outono anda por aí, por aqui ando eu e por toda a parte andamos nós. Através da minha janela, apesar do pouco que a noite me deixa ver, observo uma brisa molhada que namorisca as matas e as pessoas alcoolizadas. Namorisca-vos? Escrevo, aliás comecei a escrever, porque gosto de recriar os divertimentos dos meus processos mentais, que amorais! Jovem, azulado no olhar, sou alguém que gosta do Outono puro e duro, ou, digo, talvez puro e inspirador. No desenlace destas linhas borradas em lágrimas de gato, de vazio, de papel, sei lá, assino um nome, cujo brotou da farinha com determinados significados demoníacos, mas, principalmente, libertinos! Ousados e insistentes, como pretendo deste Outono. E o porquê do Outono ser bonito para mim? Têm sempre de perguntar. Fácil; é a estação do ano que mais me lembra, através de provas, quem sou e o que gosto. Sério e carnal, como a descida da chuva às cabeças dos animais. A par das letras, as horas passam… tenho febre. Encarar o quê?

No momento desta frase, que é durante a tarde, mais ou menos a horas previstas, vejo vias tradicionais, derreadas, alagadas de folhas caducadas, de um castanho inchado, que são desarrumadas, sem esqueleto, nas rugas de areias e pedras, pela brisa de dias quase cinzentos. O vento passa-me pela cara, esfregando-se sem regra à pele, num constante equilíbrio de ares e sopros meteorológicos. A tarde está sossegada por estes lados e também por outros, onde logicamente hajam semelhanças. Os sons da civilização são a constante do mundo e aqui também ouço alguns. Ouço automóveis, que daqui vejo como automóveis em miniatura. Não é por questão de tamanhos, mas, sinceramente, não gosto muito de automóveis. Eu gosto mais quando vejo o comboio, apesar que ainda prefiro os antigos, pois ostentavam-se noutras estéticas de classe.

Comboios… ah. Ah!, fala-se no diabo… e aparece, agora, um comboio que passa ordinariamente perto. Um comboio dos mais recentes. Paro a apreciar, para não sentir uma sensação de aproximação involuntária ao chão, vertiginosa, como se estivesse a correr contra o comboio. Ali, entendo, há muito peso a deslocar-se a muita velocidade. Ó trilhos férreos!, quereis uma toalha para o suor e, quiçá, uma pomada para aliviar os músculos? Não obtenho resposta. O som gutural do comboio, as fricções férreas, as ardências maquinais e o despejo de velocidade. Ali. Não obtenho uma resposta em português. Encarar o quê?


Continuo o meu caminho, que dá para uma floresta e, entretanto, piso mais folhas e terras esverdeadas, acastanhadas e alaranjadas. Quando me detenho num local tropeço. Tamanha maldade do meu calçado! Entrei com o pé esquerdo? Bem, e com o direito também, porque ainda não cortei nenhum deles. Neste local, o silêncio parece ser de ouro. Sem grandes fumos, sem muitos fedores e barulhos. O ambiente sonoro é o hino de pássaros esquisitos sob o encantamento de uma subtil corrente de rio. Um rio aberto, apesar de manchado. Este é um local bom e é por isso que aqui estou, sem dúvida. Quem sabe dele, nele não fala. Sabe; cala!

Cá no recinto recôndito, paralelo ao rio, em voz regular digo a palavra – fotografias –. Tiro o meu saco do ombro, deixando-o simplesmente cair no chão, qual ventoinha na palha. Dentro dele retiro uma máquina fotográfica digital. Queria antes ter uma de rolo, porque era um maior colorir dos meus gostos, mas para já o dinheiro que tenho não me compra uma dessas. Então começo a disparar o flash em múltiplas direcções. Flash! Flash! Flashflash! Tento captar do ambiente aquilo que nele mais me agrada: árvores e plantas e árvores, o rio, uma ponte de ferro e aço e afins, um pavimento esburacado, mais plantas e bichos, trilhos verdes que se perdem de vista, ou apenas dos meus óculos, e paredes arcaicas comidas pelos anos e pelos humanos. Ergo o meu saco, enquanto olho uma dezena de velas que se encontram a derreter em buracos podres, as quais me forçam a imaginar que situações viveram antes e durante aquele detalhe. Tudo me parece arte. “… dissera Olvido uma vez […], a palavra arte soa sempre a mistificação e a panos quentes. É melhor sermos amorais que imorais. Não achas? E agora, por favor, beija-me.”

Tiro fotografias com a rapidez de um pintor talentoso, em cada pincelada. Segundos passam, minutos passam, uma hora passa, agora o dia começa a virar noite e não há mais fotografias para ninguém. O rolo não terminou ou, melhor, a memória do cartão não terminou, mas porque, sim, está no meu momento de retorno: e um Homem tem que fazer o que um Homem tem que fazer! Um Demónio faz aquilo que quer fazer! Um e outro são iguais e atribuem merecimento, instintivamente, a armas e a si próprio! Encarar o quê?

Levantou-se mais algum vento, entretanto. O céu, a esta hora, está sublime, está cinzento, manchado, esquisito e denso. Passo ante passo, pé ante pé, a minha casa aproxima-se imóvel. Tenho as chaves da porta de entrada. Por acaso, trata-se de umas chaves porcas e azedas. Porcas e azedas como determinadas coisas em mim, mas que lá acabam por ter a sua utilidade. Entro, neste instante, em casa. Tudo tem uma funcionalidade, digo, até a minha mala de viagem. Quando a agarro, encarrego-me de dar-lhe vida. Enfio-lhe, para que guarde, os meus pertences: as roupas, os acessórios, uns objectos diversos, a comida e a bebida. É simples de perceber que viajarei, ou irei para outro sítio. Digo fácil de perceber e não de adivinhar, porque na minha vida não se adivinha… muito. Na vossa vida adivinha-se? (Portanto…) Prosseguindo.

Para a viagem que farei, daqui a pouco, tem de estar tudo no seu lugar e, por exemplo, a minha mala encarrega-se de ser a galeria de todos os lugares! Já estou em viagem e à conversa com as pessoas no carro. É surpreendente a quantidade de demónios que existem nas conversas. Demónios que são as frases feitas, os clichés, as frases feitas, os clichés. Uma dose de chavões e ficamos bem. As conversas estão a ser animadas, lá isso estão. Cada qual com os seus demónios idiomáticos! Retenho o segundo, no meu olhar, em que uma das pessoas, aqui no carro, se pasma e se abana com pudor entre uma fala minha. Este é um lugar-comum meu e por ele rio-me sozinho, com certeza. Consola-me deixar aquela miúda electricidade que se activa, que dança no cérebro das minhas companhias. O que importa é essa activar-se nelas, seja na cama, seja na casa-de-banho; pensarão naquilo em que falo! Entretanto, mais qualquer conversa e explicação.

Também limpo as minhas mucosas e fico quieto na audição à gelatina amanteigada do meu cérebro. É noite querida. Ventania, estradas bem iluminadas, céu com nuvens encalhadas e uma temperatura baixa. A pessoa ao meu lado grita, mas acha que fala. A meu lado, a porta do carro, um luxo, há muito que se encostou ao meu braço direito, devido ao carro estar cheio. O condutor do carro cora com os acenos a/de outros condutores e as restantes pessoas perdem-se, neste momento, a pensar naquilo que podem e não podem fazer em locais que ficam fora ou dentro das bordas da viagem. O rádio toca um disco de instrumental moderno e eu bato, algo ritmadamente, os pés nos tapetes do carro. O carro percorre estradas mais próximas do nosso fim. Estas estradas têm um aspecto negro e denso, que se engrandece no arvoredo selvagem feito, à semelhança, de um algodão rijo, frito e pegajoso.

Não há barulho para além dos vidros deste carro, o qual avança como uma lâmina de corte desabitado, enquanto os passageiros riem de nada, de coisa nenhuma e de algumas coisas. Os traços brancos na estrada demarcam a palidez e calmaria do ambiente natural. O gelo do desimpedimento ainda não quebrou. Minutos e minutos transpõem. Num momento em que a noite está mais alta, piso a localidade que nos aguardava. Um sítio verde, com o peito que vive pregado numa linha de três metros acima do horizonte azul, azul muito muito escuro. Há qualquer profundidade verdadeira aqui, um armazém de belezas que mostra mercadorias presas a uma parede, totalmente na vertical. Com vertigens mas orgulho, o armazém natural alonga-se em ramos radiosos, entre as suas relvas misteriosas e viçosas, abraçado em fauna e flora de luxo e concentrado como dinamite de carne e leguminosas. Tudo, claro, no negrume, agora. Vivo em álcool, festa, palavras e necessidades. Vários capítulos estão a passar… a passar. Param. O apartamento está com a porta aberta e com as luzes ligadas. Por que é que haveria de as desligar? Não haveria e não quero saber, não estou preocupado. Ups! Caíram as minhas bolachas, preocupei-me! Sou livre para pegar em mais e não apanhar as sujas. Sou livre para acender e sujar. Estou contra a essência de que aquilo que é abandalhado é O devasso. Ora!

Aqui, pela varanda avisto minimamente florestas agrupadas. Vento, cascas e garrafas. A noite é um lençol morno e a pele do meu corpo aquece devagarinho. De manhã. Acordo ao som do despertador ruidoso. Não dormi bem. O céu está enorme e chuvoso, para bem dos meus olhos com remela. Acordei com sono e com dores de estômago e dói-me o estômago e tenho sono. Vou para o lado oposto das outras pessoas, porque não tenho curiosidade nem paciência bonitas para o estilo desta manhã, da manhã das pessoas. Principio-me, por caminhos cheios de raízes e buracos, em direcção a lagoas grandes e frias, contra corrimões e varões de erva, flores e areia. Os montes gigantes têm essas lagoas a seus pés. Observo, contentíssimo! Imagino estas quantidades de água à temperatura da quente que sai da minha banheira. Não digo a ferver, mas muito quente para combinar numa fogueira branda para bruxas, mulheres libertinas e mágicas, que atiraria para ali. Não para querer queimá-las, mas para me enrolar com elas; quais salmões calorosos e transpirados! Quero um caldeirão de cetim, corações e orifícios! E sem fim, convulsões e cicios! Quero mexer essa receita culinária.

Com tanto para onde olhar, deambulo, pensativo, pela areia bege e misturada não sei com o quê. Sento-me numa pedra grande e sem cor. Observo e contemplo a água calma, o ambiente espectacular e a grandeza das coisas. Isto é tão belo e tão natural que me sacudo por não ser tão habitual quanto desejaria, quanto ao país compete. O céu pouco mudou e já me chamam, por qualquer razão. Por mais que se disfarce, a sensação de incompreensão aparece-lhes no rosto. Sinto-me em casa, em casa… morno, ventoso, com cheiro de chuva e arrepios. Coisas e coisas que agora passam que não vos digo. Porém, fica o desabafo que me preocupo com a preparação do meu Halloween – All Hallows’ Eve. A noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro é muito especial e tem mesmo de ser bem organizada e tomada! Poções, rituais, piadas, brincadeiras, loucuras, liberdade, criação… tudo encaixarei. Este é o meu desejo e o meu querer! Aproveitarei para escrever… e festejar também com os meus personagens medonhos e os meus demónios fofos. Ainda tentarei realizar uma película satânica! Num dia à frente. Alguém me ajuda? Oh, Diabo! Até que me emprestavas uma câmara de filmar! E eu de imediato a ti, o dinheiro certo! Negoceia-se… muito bem. Irei comprar uma. Uns modelos, meia dúzia de figurinos e argumentos, quero… e encarar o quê?

Numa próxima… as palavras mudarão, os recintos também e os gozos serão novamente meus! Chegando ao êxtase… não tenho que encarar nada, tenho sim que experimentar!

 Mosath

 

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