Biografia de Friedrich Wilhelm Nietzsche

O que representa Nietzsche para o Satanismo? Talvez o mesmo que a água representa para a vida. Cerca de 75% do nosso corpo é composto por água, foi nela que a vida teve origem, e no entanto quase que não damos pela sua presença. Nietzsche é precisamente isso para o Satanismo: a sua essência, uma fonte inspiradora, talvez não tanto a sua origem, mas sem dúvida uma das suas principais referências.

Começamos o nosso percurso com Nietzsche em 1844, numa região da Turíngia anexada à Prússia. A 15 de Outubro desse ano, nasce Friedrich Wilhelm Nietzsche, aquele que irá ser uma decisiva influência filosófica para o Satanismo! Curiosamente, do lado da mãe como do pai, a família era de pastores luteranos. Nietzsche há-de escrever que o ateísmo lhe era natural e instintivo, apesar da herança religiosa. A grande influência da sua infância é feminina, motivada pela morte do pai em 1849 e pela educação que teve com a sua irmã mais nova, Elisabeth, em Naumburg. A sua presença, física ou não, irá sempre acompanhá-lo durante a sua vida, até à sua morte, em Weimar em 1900.

Nietzsche tem uma vida relativamente curta e demasiado obscura para a grandeza da sua obra. Vive quase constantemente rodeado de dificuldades físicas, culminando na loucura que o acompanha nos seus últimos anos. Não pode ser alheio a esse facto o conteúdo da sua obra filosófica. A indisponibilidade física leva-o a concentrar-se completamente na disponibilidade mental. Enquanto que alguns alegam que mesmo essa disponibilidade mental era escassa, rotulando Nietzsche de louco, o que é a loucura senão o desvio do padrão pensante da época? Não foram também Gutenberg, Galileu ou mesmo LaVey loucos, cada qual em seu tempo? O que é inquestionável é a riqueza da obra de Nietzsche enquanto filosofia, e especificamente em relação ao Satanismo. A figura do “super-homem” é uma representação fiel do Satanista enquanto indivíduo, errante e solitário, pensador, planando bem acima da mediocridade, subindo a sua montanha. Ou não fosse Zaratustra o “pai” do “super-homem”.

Depois da morte do seu próprio pai, que o iria marcar definitivamente (35 anos depois da sua morte, Nietzsche escreve “O que o pai envolveu de silêncio, deve o filho dizê-lo. Vi frequentemente irradiar no filho um mistério paterno” como palavras de Zaratustra), acompanhamos Nietzsche até Pforta, onde estuda, continuando o seu percurso académico depois em Bona e posteriormente em Leipzig, chegando finalmente em 1869 a professor de filologia em Basileia.

Durante o seu percurso académico, Nietzsche troca a teologia pela filosofia, um indício claro do que seria o futuro da sua obra, afastada dos dogmas cristãos da sua época. Uma das suas principais referências neste domínio é Schopenhauer, também ele uma imagem marcante desta linha de pensamento filosófico.

Apesar de um acompanhamento fugaz, motivado pela parca extensão deste escrito, não podemos negligenciar a influência que o percurso académico de Nietzsche tem no seu pensamento. De facto, Nietzsche não se centra apenas na filosofia, mas aborda também as ciências exactas, como a Física. Esta pluralidade de conhecimento, a dicotomia pensamento abstracto / pensamento exacto, é latente na profunda reflexão, mas precisa exactidão, da obra de Nietzsche.

É por volta desta altura que Nietzsche inicia a sua relação com Wagner e Cósima, esposa deste. Podemos acompanhar Nietzsche numa das suas visitas ao casal, e imaginar as discussões travadas com Wagner. Este será sempre uma figura dúbia para Nietzsche, com quem partilhará uma dualidade de atracção / repulsão durante a sua longa relação, até à morte de Wagner.

A figura de Wagner assume um aspecto particular em Nietzsche, com um curioso paralelismo em situações bem próximas também de cada um de nós. Nietzsche tem de Wagner uma ideia inicial extremamente positiva, alguém reverenciado na sua época e considerado um dos máximos expoentes musicais (e não só) da Alemanha. Essa ideia é desmistificada com a convivência próxima com Wagner e Cósima, tornando-se cada vez mais distante, culminando então com o quarto tomo das suas “Considerações Intempestivas”, onde é assumida publicamente essa inversão do conceito wagneriano em Nietzsche. Não é o encerrar desta relação, mas o concluir de um ciclo.

Passamos do conforto do lar Wagneriano para o troar dos canhões no fulgor do combate, acompanhando Nietzsche durante a guerra de 1870 entre a França e a Prússia. De facto Nietzsche não participa activamente nos combates, mas é maqueiro. Partilha uma experiência de vida com as massas, de onde sai certamente com a sua ideologia enriquecida com mais uma perspectiva, um ponto de vista diferente. Atinge mais uma cor no espectro prismático da luz.
Deixemos as macas ensanguentadas para sentarmo-nos ao lado de Nietzsche, assistindo à escrita de “A Origem da Tragédia”. Estamos em 1872, e vemos Nietzsche atravessar as máscaras de Wagner e Schopenhauer, num livro mal acolhido pelos seus pares. Continuamos a acompanhar a escrita de Nietzsche, enquanto ele dá origem às suas “Consi-derações Intempestivas” nos anos seguintes, distanciando-se claramente de Wagner.

Somos forçados a abandonar a vida sedentária, quando em 1878 Nietzsche abraça uma faceta nómada, viajando sucessivamente de local em local, sozinho ou acompanhado pelos seus (parcos) amigos. Desta forma percorremos Suíça, Itália, França, tendo ainda tempo de observar o nascimento de “Humano, Demasiado Humano”, um livro onde Nietzsche inicia uma crítica mordaz e cerrada dos valores. Novamente é mal recebido, nomeadamente por Wagner, que o ataca ferozmente.

Paralelamente a tudo isto, assistimos impotentes ao decair da saúde física de Nietzsche. Há alturas em que não pode mesmo ler, podendo nós apenas imaginar a angústia por que passava nesses dias conturbados.

E no entanto vemos as folhas marcadas com o seu punho forte a passar incessantemente. Depois de “Humano, Demasiado Humano”, a crítica continua com “O Viajante e a Sua Sombra”, em 1879, e com “Aurora”, em 1881. Começa também a escrever “A Gaia Ciência”, em 1882, mas interrompe a sua escrita de uma forma abrupta. Num píncaro de inspiração, eis que se encontra Zaratustra!

Movido por uma força mental contraditória às suas limitações físicas, uma inspiração desvairada que tudo supera, somos arrastados no rodopio que é a escrita dos quatro livros que compõem “Assim Falava Zaratustra”. Nesta obra, leva a crítica a um nível tal que potencia a “transmutação” dos valores, uma forte imagem do seu legado. Paralelamente, acumula as notas para a continuação desta grande epopeia do pensamento, que infelizmente nunca se chegará a concretizar.

Numa possível opinião, o expoente máximo da bibliografia de Nietzsche é “Assim Falava Zaratustra”. É a sua obra filosófica mais próxima do pensamento Satanista. É uma alegoria, uma metáfora, e consequentemente, uma aproximação poderosa ao pensamento. Zaratustra é o “super-homem” errante, o livre pensador, a ave de rapina, o alpinista por excelência. É tudo isso, e ao mesmo tempo apenas uma ideia. Um pensamento. A matéria-prima para a revolução mais importante de todas: a da nossa mente.

A filosofia é lenha para a fogueira do nosso pensamento, não é a resposta mas sim um meio para eventualmente a atingirmos... ou não. Se usarmos esta analogia, Nietzsche é o combustível infinito. Zaratustra providencia as labaredas mais intensas. Mas de nada serve toda esta energia se não for aproveitada para algo. Nietzsche refere-se precisamente a este ponto quando afirma que o maior elogio que lhe podem fazer é criticá-lo. Só se tiver uma consequência no nosso pensamento é que a obra de Nietzsche serviu o propósito do seu autor.

Abandonamos por momentos o lado filosófico de Nietzsche para nos debruçarmos sobre o seu lado sentimental, já que é anterior à escrita de “Assim Falava Zaratustra” o envolvimento de Nietzsche com a jovem russa Lu von Salomé. Chega a pedir a sua mão em casamento, que não se chega a concretizar, em muito graças à intervenção da sua irmã, Elisabeth, uma opositora feroz desta união.

Curiosamente não assistimos ao casamento de Elisabeth, em 1885, mantendo-nos no acompanhamento de perto a Nietzsche. A sua irmã desposa um wagneriano anti-semita e nacionalista, Foerster de seu nome. O facto de não ter assistido ao casamento é o sinal evidente do distanciamento de Nietzsche para com esta “influência” racista na sua família, que repudia. Em resposta a um outro racista, pede-lhe que deixe de lhe enviar as suas publicações, temendo pela sua paciência. Será o suficiente para aqueles que insistem na associação Nietzsche – Hitler?

Mas continuemos o nosso percurso imparável! Em 1886 surge “Para Além do Bem e do Mal”, e um ano depois, “A Genealogia da Moral”. Também em 1887 conclui finalmente “A Gaia Ciência”, finalizando o trabalho interrompido pela visão deslumbrante de Zaratustra. Por esta altura Nietzsche escreve o seu sétimo livro em onze anos (sem contar com as “Considerações Intempestivas” e outras variadas publicações paralelas e escritos “menores”, do ponto de vista desta narrativa). Um pensador profícuo não podia deixar de dar origem a uma tão vasta bibliografia.

Esta média literária é no entanto completamente arrasada com o extraordinário ano de 1888, em que mal temos tempo de acompanhar Nietzsche enquanto vemos passar pelos nossos olhos as páginas de “O Crepúsculo dos Ídolos” ou “O Caso Wagner”, deslumbrando-nos ainda com as restantes adições ao triunvirato iniciado com “Assim Falava Zaratustra”, na opinião do vosso guia.

Nietzsche torna-se no Anticristo. Pelo menos na autoria do livro respectivo. Não pode-mos deixar de destacar o particular contexto em que esta obra surge, uma clara revolta contra o clima marcadamente cristão da sua época. Também por isso é uma afirmação de carácter, um tremendo grito, um suave aroma num pântano pútrido.

Nietzsche refugiou-se para escrever este livro, demorando cerca de seis meses (em fôlegos rápidos, não sucessivamente) para o concluir. É portanto o resultado de um intenso trabalho, quase que uma transposição para o papel de um determinado estado de espírto, uma conjectura mental especial. Nietzsche “rumina” um conjunto de situações vistas e vividas durante um largo período de tempo, e “vomita” uma obra ímpar no contexto filosófico.
Muitas vezes mais notada pelo seu nome do que pelo seu conteúdo, “O Anticristo” é uma obra preciosa na bibliografia de Nietzsche por nos permitir espreitar por fugazes instantes para o cérebro do seu autor, dado o contexto em que surge. Nas palavras do próprio, é preciso muito caos interior para parir uma estrela que dança...

Um outro marco incontornável na obra literária de Nietzsche é “Ecce Homo”, a sua autobiografia. Nela Nietzsche fala não só de si, mas também da sua obra. Uma auto-crítica ao trabalho da sua vida. Pessoalmente, sou um ávido consumidor de biografias. Dão-nos uma perspectiva sobre a vida de um indivíduo, fornecendo informação a que, de outra forma, dificilmente teríamos acesso. São também uma faca de dois gumes, pois não são raras as ocasiões em que são pintadas imagens de alguém que em muito pouco correspondem à realidade.

Naturalmente que uma autobiografia é tudo isso e muito mais. É uma visão distorcida da realidade, sob a perspectiva do seu autor. Neste caso particular, é-nos permitido olhar para o mundo através do pensamento de Nietzsche, particularmente relevante uma vez que é uma obra que tem a sua origem no prenúncio da loucura do seu autor. É uma gema preciosa no vasto espólio que Nietzsche construiu ao longo da sua vida. Pelo menos tem o condão de nos fazer ponderar no argumento de, segundo o seu autor, porque é que ele escreve tão bons livros.

Resta-nos já um curto percurso a percorrer com Nietzsche. A partir daqui, o caminho é sempre descendente, assim como a sua saúde física e a sanidade mental. A sua irmã Elisabeth volta ao seu leito para se juntar a nós nos últimos anos da vida de Nietzsche. Presta adicionalmente um extraordinário serviço às gerações vindouras, as nossas incluídas, ao compilar um conjunto adicional de notas, cartas e outro material de autoria do seu irmão, organizando o Nietzsche-Archiv em Weimar, uma fonte inesgotável para os que saciam a sua sede de conhecimento na obra literária de Nietzsche.
A nossa viagem acaba portanto em Weimar, acompanhando tristemente os últimos dias de Nietzsche, perecendo no dia 28 de Agosto de 1900 um dos maiores pensadores de todos os tempos.

Falando a nível pessoal, Nietzsche criou a sua marca do ponto de vista filosófico. É inevitável ler Nietzsche e passar uma larga quantidade de tempo a divagar nos seus pensamentos, entremeando-os com os nossos, chegando a novas conclusões, olhando para a realidade sob uma perspectiva diferente, mesmo que ligeiramente.

A obra de Nietzsche é uma nau que parte à descoberta de novos mundos num mar revolto, recheado de perigos, mas prometendo grandes riquezas. Não promete uma viagem segura, nem um confortável porto de abrigo, mas sim uma constante procura na tormenta de um ilhéu de calmaria, um ideal de silêncio que Zaratustra procura também encontrar no topo da sua montanha, onde, segundo ele, o ar é mais puro e fresco.

O silêncio acaba também por ser determinante para a corrente de pensamento do Satanista, pois só depois de se elevar para além do ruído do mundano se poderá de facto ouvir algo bem mais importante: o silêncio do nosso pensamento. Como numa praia, após o desabar de uma onda na areia, o período de silêncio é utilizado para armazenar forças para uma nova vaga. Nietzsche pode proporcionar-nos esse período de silêncio através da sua obra, fornecer uma pena adicional nas nossas asas, permitindo-nos elevar um pouco mais acima, para de novo picarmos em voo cerrado sobre o mundano, para mais uma bicada. Será por acaso que a águia é o animal de Zaratustra?

Se olharmos para LaVey como o “pai” do Satanismo, não poderemos deixar de olhar para Nietzsche como o seu “avô”...

Uma possível bibliografia de Nietzsche, segundo uma prioridade de importância e relevância subjectiva, da exclusiva responsabilidade do vosso guia:

• 1883 – Assim Falava Zaratustra, I-II
• 1884 – Assim Falava Zaratustra, III
• 1885 – Assim Falava Zaratustra, IV
• 1888 – O Anticristo
• 1888 – Ecce Homo
• 1878 –Humano, Demasiado Humano
• 1879 – O Viajante e a Sua Sombra
• 1881 – Aurora
• 1886 – Para Além do Bem e do Mal
• 1887 – Genealogia da Moral
• 1888 – O Crepúsculo dos Ídolos
• 1882 – A Gaia Ciência, I-IV
• 1887 – A Gaia Ciência, V
• 1873 – Considerações Intempestivas, I, “David Strauss”
• 1874 – Considerações Intempestivas, II, “Utilidade e Inconveniente dos Estudos Históricos”
• 1874 – Considerações Intempestivas, III, “Schopenhauer Educador”
• 1876 – Considerações Intempestivas, IV, “Richard Wagner”
• 1872 – A Origem da Tragédia
• 1888 – O Caso Wagner
• 1888 – Nietzsche Contra Wagner

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